terça-feira, 29 de setembro de 2020

A traição da inocência

A traição da inocência magoa profundamente um lugar que vai além da emoção no coração, magoa a alma... põe em causa o acreditar na humanidade... perguntamo se vale a pena realmente importar-nos...

Quando a traição da alma acontece descemos ao inferno da miséria humana... porque a traição da alma só pode vir de um espaço profundamente destorcido... onde todos os princípios são postos em causa, onde os valores pelos quais damos a vida são usados para manipular...

Só pode sentir a traição da alma quem ainda tem alma... só pode sentir a traição da inocência quem ainda tem alguma intocada...

A traição da inocência que magoa intimamente o ânimo leva-nos a enrolar-nos sobre o coração e tentar proteger o que lhe doí... ele, não consegue ter espaço para o que a alma chora... então as lágrimas escorrem sem apaziguar como normalmente o fazem...

Quando deixamos o coração soltar tanto pranto conseguimos contemplar com mais claridade este nosso mundo... um mundo com tanta beleza que arrepia qualquer um que tem olhos para ver... um mundo com tamanha graciosidade que nos põe de joelhos a agradecer esta vida... Mas também nos faz assistir mais uma vez à ilusão da desgraça humana... a penúria que habita em tantos corpos à espera de ser resgatada pelas suas próprias almas que vagueiam com medo de voltar a casa... porque uma vez abandonada não se sabe o que se pode lá encontrar...

Quando a inocência é traída há que chorar... até que choramos não por nós, mas por quem trai... pelo seu reprimido e retorcido infortúnio... pela sua alma perdida... pelo seu engano... por todas as justificações que dão para justificar tanto adultério à sua própria alma... no lugar do amor, da luz, da alegria, da compaixão, da amizade, da força, da liberdade, da integridade habita a corrupção, habita o medo, habita a dor, habita o pus, habita a ganância, habita o desejo frio e solitário, habita a posse... afinal de contas a miséria...

Então chora-se, chora-se muito por quase de deixarmos de acreditar que vale a pena...

E como o nosso Fernando Pessoa dizia: Tudo vale  a pena quando a alma não é pequena... e aí novamente há um suspiro de se já ter visto infinitamente a miséria humana e mesmo assim não se perder a esperança...

Então atira-se a cabeça para trás, pomos o coração ao alto e uma bem-aventurança volta a encher o peito... e damos graças à liberdade que é viver cheios de alma... uma inocência que é traída não significa que é destruída...torna-se apenas mais sabída...

E então sabemos que não há nada a chorar nem por nós nem por ninguém... Quando o coração é bafejado com o sopro da perceção consciente fica claro o que escolhemos dar a nossa precisa atenção...

Satya Rita Rocha